sábado, 15 de agosto de 2009

MARIA GENOVEVA DO BONFIM: O NASCIMENTO DA NAÇÃO CONGO-ANGOLA NO BRASIL




Profº Drº Sergio Paulo Adolfo – Tata Kisaba Kiundundulu

A história do candomblé de congo-angola no Brasil está amparada quase que só na oralidade do Povo-de-santo angoleiro e seus registros escritos bibliográficos expressivos são muito escassos. Os poucos registros existentes são de Edison Carneiro, dignos de crédito, é verdade, mas em alguns momentos extremamente confusos e pouco esclarecedores. Em Religiões Negras – Negros Bantos, editado pela primeira vez em 1937 ele usa a terminologia reducionista “candomblé de caboclo” para referir-se aos candomblés bantu. Explica o autor, que os candomblés de caboclo eram uma mistura de práticas nagôs, ameríndias e de catolicismo e, ainda segundo ele, os bantu não tinham mitologia nem deuses suficientes para seu culto e por isso apoderaram-se dos orixás nagôs, das figuras de índios e da mitologia indígena, isso tudo sincretizado com o catolicismo popular. Pouco mais adiante, no entanto, ele diz que o único candomblé bantu, de nação Congo existente era o Terreiro de Santa Bárbara, de Manuel Bernardino da Paixão. O que podemos inferir dessa aparente confusão é que o autor, naquele momento, ainda não dispunha de conceitos muito claros a respeito dos candomblés que não se pautavam pelo modelo nagô, porque, páginas adiante ele reproduz interessante relato do Babalawô Martiniano do Bonfim, que, segundo Martiniano, o primeiro candomblé de caboclo, leia-se bantu, foi o de Naninha, uma senhora mulata, que dirigia seu candomblé no Moinho da antiga roça do Gantois que desapareceu com sua morte. O segundo candomblé de Caboclo, segundo Martiniano foi o de Silvana, que tocava sua roça num local chamado Periperí o que leva Edison Carneiro a concluir com a seguinte afirmação: “Daí, desses dois “terreiros” de caboclo, nasceram todos os candomblés que estamos estudando” (CARNEIRO:1991, p.135).E notem que o autor estava estudando os candomblés de origem bantu de então, e, continua informando que, ainda segundo Martiniano, os negros angolas costumavam usar tambores grandes, maiores que os dos nagôs e que os tocavam deitados entre suas pernas. Acrescenta ainda, que o velho Babalawô Martiniano recordava-se da seriedade com que o Pai-de-santo Gregório Maqüende dirigia as festas de seu candomblé de nação Congo, o que nos leva a concluir dessas páginas de Edison Carneiro, é que os candomblés de feição bantu, existem na Bahia desde os finais do século XIX, e que, desde seus primórdios cultuavam os caboclos, por isso eram chamados de candomblés de caboclo, ou melhor, que a natureza do candomblé bantu, dada sua mítica, nasceu já cultuando caboclo. É também necessário atentarmos para o fato de que Martiniano do Bonfim foi auxiliar de Nina Rodrigues e que este trabalhou como informante em suas pesquisas nas duas últimas décadas do século XIX e que Martiniano era figura conhecida e circulada nos meios africanos em Salvador. Se o Babalawô se recorda de dois candomblés de caboclo (sic) famosos no final do século XIX é sinal que os Bantu já tinham culto organizado desde então, mas que não foram notados por Nina Rodrigues nem por Manuel Querino. Verdade é que, o único nome conhecido que ele cita é o de Gregório Maqüende, citado no pretérito, portanto, dado já como desaparecido e comparado a Bernardino da Paixão, por sua seriedade na condução de sua casa. Não podemos nos esquecer que Bernardino foi contemporâneo de Edison Carneiro e com ele estabeleceu relações de quase amizade. Em obra posterior, (CARNEIRO:1982) veremos aparecer os nomes de Ciriáco e Maria Neném não como fundadores e sim como Zeladores de renome, ao lado de Mariquinha Lembá juntamente com o terreiro do Calabetã. Em alguns momentos, Carneiro reconhece a existência de candomblés bantu, em outros engloba todos os candomblés não nagôs no rol dos candomblés de caboclo. Outrossim, não temos encontrado outras referências à fundação ou início dos candomblés bantu na Bahia, a não ser relativo ao funcionamento e fechamento dos famosos Calundus pelo Brasil a fora durante o período colonial, o que não nos autoriza a concluir que os candomblés bantu como os conhecemos tenha sido uma continuação dos Calundus. Ainda nessa linha de raciocínio, encontramos Ruth Landes que esteve na Bahia no ano de 1936 e em seu livro Cidade das Mulheres, ela narra a entrevista que teve com Mãe Sabina, famosa, na época, e que era mãe de um candomblé de caboclo, e por isso vivamente censurada pelo povo-de-santo em razão de suas práticas e posturas inovadoras e tampouco era reconhecida pelas Sacerdotisas nagôs. Sabina era continuadora de uma outra Mãe de Santo, por nome Theodora, essa sim respeitada até por Mãe Menininha, um ícone do candomblé de então. Por aí podemos deduzir que os candomblés de caboclo, ou seja, que não eram bantu, mas que cultuavam os orixás caboclizados eram diferentes dos candomblés bantu, diferença essa não percebida claramente por Edison Carneiro. E que, os candomblés legitimamente de caboclos que tinham a frente Sabina e Theodora estavam em sua fase inicial naquele momento, década de 30 do século XX, posteriores portanto aos candomblés de Naninha e Silvana apontados por Martiniano. Ainda no já citado Religiões Negras – Negros Bantos, de Carneiro,(1991) o autor nos relata um encontro que teve com o Pai-de-Santo Jubiabá, pai de iniciação de Joãozinho da Goméia, e diz lá claramente que Jubiabá era um Sacerdote de Candomblé de Caboclo o que nos leva a pensar que talvez Jubiabá fosse um sacerdote de Candomblé bantu como sempre afirmou Tata Londirá. Nesse mesmo livro, Carneiro registra algumas cantigas coletadas em candomblés de Caboclo, sendo algumas em português, inclusive conhecidas nossas por as termos ouvido em casas de angola milongada. Outras em Kikongo/kimbundo entoadas até hoje nas casas tradicionais o que é um dado a mais na nossa tese de que Carneiro confundiu candomblé de caboclo com candomblé bantu. Se Silvana e Theodora causavam tanto mal estar nos meios candomblecistas é porque praticavam um culto novo que feria a hortodoxia dos candomblés nagôs, ou seja, não era algo já concretizado e cimentado, mas alguma coisa inovadora e causadora de espanto e mal estar. Por todas essas evidências, podemos concluir que o que Edison Carneiro chama de candomblé de caboclo era na verdade candomblé bantu. E ele próprio afirma através da fala de Martiniano do Bonfim que eles, os candomblés de caboclo (sic) existiam desde o século XIX, permanecendo ainda muito vivo nas lembranças de Martiniano as figuras de Naninha e Silvana, antigas sacerdotizas de candomblé bantu. Martiniano, no mesmo texto, também pontua a maneira dos angolanos tocarem seus atabaques, que eram bem maiores que os atuais (deles) usados pelos nagôs e inclusive à maneira de executá-los. Todos esses elementos nos conduzem a concluir que os candomblés bantu foram criados muito antes da Matriarca Maria Neném, que eles já existiam na Bahia concomitantemente aos candomblés de outras nações e que a importância de Maria Neném, chamada de “A Mãe do Angola” está no fato de que de suas mãos tiveram origem duas raízes importantes do candomblé Bantu, no Brasil, o Bate-Folha e o Tumba Junçara, criadas a partir das ações de Bernardino da Paixão e Manuel Ciriáco e que não sem razão ela, Maria Neném permanece viva na memória do Povo-de-Santo angoleiro e recebeu este merecido epíteto.
Quanto a antiguidade de determinadas casas, no Encontro de Nações-de-Candomblé ocorrido em Salvador-Ba., no ano de 1984, numa realização do CEAO (Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA) temos a fala do Sr. Esmeraldo Emetério de Santana, Xicarangomo do Terreiro Tumba Junçara que enumerando as casas mais antigas de candomblé bantu nós brinda com as seguintes informações: Segundo ele a casa de congo mais antiga da Bahia foi o Calabetã, pertencendo a Sra. Maria Corqueijo Sampaio, dijina Malamdiasambe, seguida da casa de Gregório Maqüende e depois a de Roberto Barros Reis, iniciador de Maria Neném a quem deixou como herança a NzoTumbenci. Ainda no seu relato, ele aponta a casa de Bernardino precedendo a de Ciriáco, pois, apesar dos dois serem filhos-de-santo de Maria Neném, Ciriáco foi viver no Rio de Janeiro, enquanto Bernardino permaneceu na Bahia e abriu sua casa de santo. Nas memórias do Xicarangomo não constam os nomes de Naninha nem de Silvana presentes no relato de Martiniano o que nos leva a pensar que Naninha e Silvana não são lembradas por não deixarem descendência e, portanto, não criarem raízes.Consta da memória dos mais antigos do Tumbeici e do Bate-folha –Salvador, duas personagens africanas, uma do Congo e outra de Cabinda, respectivamente Manoel de Nkossi e Roberto Barros Reis, que ocupam lugar privilegiado na memória dos mais velhos sendo os dois únicos africanos presentes na constituição do candomblé bantu, de acordo com essas memórias. As outras figuras históricas, Maria Neném, Manuel Bernardino da Paixão e Manuel Ciriáco eram brasileiros sem nenhuma ligação direta com a África sendo, dessa forma, bantu por adoção, diferentemente de outros líderes fundadores de outras nações de candomblé que haviam vindo da África e conhecido lá a religião de seus ancestrais. Esse fato que pode parecer irrelevante é, no entanto, merecedor de uma análise mais profunda, se quisermos entender a dinâmica do candomblé bantu no Brasil. Enquanto os outros candomblés foram criados como continuação dos cultos de origem nas nações correspondentes, e como decorrência de associações étnicas, que mantinham, muitas vezes, ainda vivos na memória de seus fundadores os cultos africanos, o candomblé bantu se estrutura por um ato de vontade de um grupo de descendentes de africanos em cultuar divindades com as quais só tiveram contato de segunda mão.
Os calundus, formas religiosas bantu que fizeram história durante os períodos anteriores, não deixaram, pelo visto, herança no candomblé bantu na forma que o conhecemos. O próprio termo calundu remete a um culto angolano, a adoração do antepassado e pelo pouco que sabemos era conduzido normalmente por apenas um sacerdote, que fazia o papel de adivinhador, curandeiro e médium de espíritos, mas que também não temos informações com que divindades agia, se antepassados ou se gênios da natureza ou os dois. Outra hipótese é que, esses dois africanos citados, Manuel de Nkossi e Manuel Barros Reis fossem calunduzeiros e que Maria Neném não satisfeita com o Calundu tenha resolvido ampliá-lo dando-lhe uma forma religiosa mais plural. E que ela Maria Neném, contando com a ajuda de seu iniciador, Roberto Barros Reis, que segundo fontes orais, era angolano de Cabinda, portanto, de cultura bakongo, aperfeiçoou essa forma que hoje conhecemos como candomblé bantu. levando-se em conta que, os candomblés de outras nações já estavam estabelecidos à longa data na Bahia, conforme testemunhos fidedignos de Nina Rodrigues e Manuel Querino. Não há registros nem fonte orais que dêem conta da origem religiosa de Manuel Nkossi e só sabemos que Roberto Barros Reis era Ntoma Nsi, cargo que ocupava em Cabinda de onde era procedente, segundo testemunho de Tata Walter de Nkossi do Rio de Janeiro. Nesse caso, e não sabemos mais nada de Manuel de Nkossi, o iniciador de Bernardino da Paixão, as práticas adotadas por Maria Neném teriam vindo de Cabinda e talvez por isso ela seja considerada a mãe do Angola, porque Cabinda nesse momento histórico já fazia parte da colônia angolana, pertencente aos portugueses, apesar da cultura cabinda ser de extrato congo, onde se fala uma das línguas do universo lingüístico kikongo, acrescendo-se o fato de que a origem da maioria dos Minkissi cultuados no Brasil é de origem congolesa , e, aliás, o próprio termo Nkissi é de origem lingüística do universo lingüístico bakongo.
Em Candomblés da Bahia,(1982) Edison Carneiro enumera terreiros congo e terreiros angola sem especificar as diferenças entre um e outro. Quando perguntamos sobre isso aos sacerdotes atuais, as respostas são evasivas e quando muito dizem que são angoleiros porque descendem de Maria Neném ou são congos porque tem uma descendência de Bernardino, que por sua vez tinha um lado angola vindo de Maria Neném. Não há, tal como em Edison Carneiro, respostas objetivas e claras a respeito das diferenças estruturais ou lingüísticas que possam marcar diacriticamente as duas modalidades de candomblé bantu. Hodiernamente a nomenclatura passou a ser congo-angola ou angola congo dependendo do gosto do sujeito discursivo.
Porque então o candomblé bantu no Brasil é chamado de candomblé de Angola, se os dois africanos ainda na memória do povo angoleiro são exatamente de cultura bakongo?
Podemos pensar que talvez, Naninha e Silvana fossem angolanas e marcaram o candomblé iniciado por elas? Essa hipótese ganha força se atentarmos também para o fato de que Martiniano destaca em sua fala a maneira dos angolanos tocarem seus atabaques. Silvana e Naninha faziam uma modalidade de culto legitimamente angolano e por isso os candomblés nascido das mãos delas, não constando nos registros históricos, nem na memória dos angoleiros, fosse proveniente de angola? No entanto, com a entrada em cena de Manuel Nkossi e Roberto Barros Reis, esse mesmo candomblé angola é provido de outros elementos, dessa vez da área bakongo, uma vez que os dois eram congoleses e por isso o candomblé passa a chamar-se candomblé de congo-angola? E os demais candomblés congos, o de Mariquinha Lembá, do Calabetã e o de Gregório Maquënde que são registrados por Edison Carneiro nessa modalidade? Porque eram chamados de Congo e não de Angola ou de Congo-Angola? Essa é uma discussão que está para ser feita se quisermos chegar à raiz do problema.
Maria Genoveva do Bonfim, Mameto Tuenda Dia Nzambi era gaúcha de nascimento e foi iniciada por Roberto Barros Reis, provavelmente no início do século XX. Segundo o depoimento oral dos antigos era mulher muito enérgica, de semblante fechado, riso difícil, mas de caráter irrepreensível e bom coração, como prova o ato de adotar inúmeras crianças, alguns falam em 17 outros em 21, que criou como filhos até a fase adulta. Exercia a profissão de corretora de imóveis e Edison Carneiro a coloca na galeria das Sacerdotisas mais amadas da Bahia da sua época. Durante a perseguição movida pelo delegado Pedro Gordilho ao povo-de-santo, conta a história quase lendária que Maria Neném foi a única a nunca ser molestada pelo delegado e que inclusive colocou na sua casa uma placa com os dizeres – cá te espero –numa clara afronta ao poder do sanguinário delegado. Outra versão do relato dá conta que Pedro Gordilho ao tentar invadir o terreiro da matriarca foi tomado por Nkossi e perdeu as faculdades mentais. Evidente que estas histórias surgiram a partir da fama da protagonista, mulher com certeza, forte e decidida.
Não se sabe quando Roberto Barros Reis morreu, mas segundo a tradição, o terreiro Tombeici fundado por ele ficou como herança para sua filha de santo Maria Neném que morreu em 1945 permanecendo sua casa fechada durante anos, sendo que os assentamentos de seus Minkissi foram cuidados por parentes próximos, mas nenhum filho-de-santo da sua casa se dispôs, então, a continuar o trabalho da Sacerdotisa.
Maria Neném é chamada de a mãe do angola, reafirmando seu papel de fundadora de uma das vertentes do candomblé na Bahia. Foi a iniciadora de um dos mais prestigiados pais de santo bantu, Manuel Ciriáco, fundador do Tumba Junçara terreiro que deu origem a uma enorme linhagem; e foi também continuadora dos ritos de iniciação de outro baluarte do candomblé congo-angola, Manuel Bernardino da Paixão, fundador do Bate-Folha, que sendo filho espiritual de Manuel de Nkossi, com o falecimento deste, entregou-se aos cuidados da matriarca, tornando-se dessa forma seu filho de santo.



[1] Segundo Nei Lopes: (3) Comunidade terreiro onde se realizam essas festas. De origem banta mas de étimo controverso. Para A.G. Cunha é híbrido de Candombe mais o yorubá Ilê, casa. Nascentes dá apenas origem africana. Raymundo dá kA+ndombe, com apêntese de l. E Yeda P. de Castro aponta longa evolução, a partir do protobanto.
[2] Manuel Querino, pesquisador auto-didata que viveu na Bahia , nasceu em 28 de julho de 1851, na cidade de Santo Amaro da Purificação. Escreveu entre outros livros e artigos para revistas, o célebre A raça africana e os seus costumes na Bahia, publicado pela primeira vez em 1938.
[3] Xicarangomo – Kambondu encarregado dos atabaques e das cantigas rituais nos candomblés de congo-angola.

GALERIA INGUÉ KAITUMBA

Hipolito Reis(Dilazenze Malumgo)

D. Roxâ com suas primeiras filhas de santo

Tatas Kambomdo do Terreiro de Matamba Tombenci Neto



D. Massú(Mamento Kizunguirá)



Filhas de santo de D . Roxâ




INTERCÂMBIO AFRO - CULTURAL

A casa do Boneco de Itacaré nos propiciou mais um intercâmbio afro-cultural entre o Terreiro de Matamba Tombenci Neto e a Casa do Boneco, o evento foi realizado nos dia 09 e 10 de agosto em Itacaré, no clima de muita harmonia entre as duas comunidade que trocaram experiências e estabeleceram possibilidades para novas parcerias.












































Mais uma vez nossos agradecimentos a todos da Casa do Boneco em especial para as grandes lideranças: Jorge Rasta, Negona Jeje e Sayonara, pela recepção e pelo carinho com que vocês nos receberam, Nosso muito obrigado.

Mês de julho foi de Festas no Terreiro de Matamba Tombenci Neto

O mês de julho no Terreiro de Matamba Tombenci Neto foi de festa, para homenagear os Inkissis Mam’etu Nzumba, Tat´etu Nkossi, Tat´etu Kavungu, os festejos começaram no dia 19 de julho com a inauguração da Mukambo da Cabocla Jupira e finalizou se no dia 27 com a Masangu Kwa Tat´etu Kavungu (Pipoca de Kavungu).
Confira as fotos


kizoomba kwa nkisi Mam’etu Nzumba










Kizoomba e Makunde de Tat´etu Nkossi



























Homenagem a Tat´etu Nkosi, feita pelo Grupo de Capoeira Mucumbo do Mestre angoleiro Virgílio, que ministra aulas de capoeira angola todas as segunda - feira no Terreiro das 18:00hs às 20:00hs.

































Inauguração da Mukambo da Cabocla Jupira

































Um dos pontos alto dos festejos do mês de julho no terreiro de Matamba Tombenci Neto, foi o resgate de uma tradição que a muito tempo não acontecia no terreiro, a entrega dos presentes para os Minkisi Ndanda-Nlunda, Kaia e Nzumba no mês de julho o evento aconteceu no dia 26 ás 5:30min. da manhã envolvendo toda comunidade do terreiro.

Confira as Foto





























A Mam´etu kwa Nkisi Mukalê (Mãe Ilza) agradece a todos que com a sua presença, abrilhantaram ainda mais as homenagens que fizemos aos nossos Deuses do panteão Congo-Angola. Que Nzambi abençõe a todos!


Pesquisa analisa candomblé com proposta antropológica inovadora


Quais os mistérios da permanência e difusão cada vez maior de uma religião ministrada por excluídos, perseguida pelo establishment e estigmatizada como 'mágica' numa sociedade pós-industrial? O candomblé no Brasil tem ocupado teóricos tradicionais como o francês Roger Bastide, autor de O candomblé da Bahia – clássico da sociologia das religiões publicado em 1958, que aborda o transe, a possessão e os ritos das religiões afro-brasileiras. Marcio Goldman, antropólogo da UFRJ, investiga essa área há 25 anos. Sua tese de mestrado A Possessão e a Construção Ritual da Pessoa no Candomblé, de 1984, originou, mais tarde, uma densa pesquisa em terreiros de candomblé. Com apoio do programa Cientistas do Nosso Estado ele aborda a 'Ontologia, Epistemologia e História nas Religiões Afro-brasileiras' partindo de uma inovação teórica.Para isso o professor de Antropologia Social utilizará instrumentos originais: o arsenal de pensadores como o filósofo Gilles Deleuze, o esquizoanalista Félix Guatarri, a historiadora da ciência Isabelle Stengers, entre outros. Tudo isso somado a sua própria pesquisa de campo (em Ilhéus, no Sul da Bahia) e a aquelas de cinco alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ em terreiros de Valença e Caravelas, também na Bahia; no Rio de Janeiro; e em Pelotas, no Rio Grande do Sul. "O movimento característico da pesquisa antropológica é a utilização da literatura confrontada com a pesquisa de campo. Existem duas vertentes tradicionais na literatura afro-brasileira - uma que privilegia a busca da continuidade com a cultura africana e outra, construída nos anos 1970, que privilegia a dimensão social em que vivem as pessoas dessas religiões. Meu interesse não é bem nem uma coisa nem a outra. O que o projeto pretende, com esse título 'Ontologia, Epistemologia e História das Religiões Afro-Brasileiras', é tentar entender algumas das formas do pensamento aí existentes. Pois se trata de formas de pensamento muito sofisticadas e, por isso mesmo, de difícil compreensão", avalia Goldman, localizando aí uma das razões da sobrevivência e expansão do candomblé no Brasil. Todo grupo humano desenvolve ao longo de sua história esses modos de pensar, como explica o antropólogo: "Em geral, quando tentamos entender como funcionam esses sistemas, aplicamos idéias de nossos grandes pensadores; idéias que muitas vezes não são adequadas para isso. Uma alternativa é lançar mão de pensadores, como Deleuze ou Latour, que insistem justamente em dimensões pouco contempladas do nosso próprio pensamento. Só assim, creio, é possível revelar a complexidade das práticas e pensamentos envolvidos no candomblé. Na possessão espiritual, por exemplo, estamos às voltas com duas entidades ou uma só? Mas trata-se mais de conexões com esses e outros autores do que de aplicações".O diferencial do candombléA escolha desse objeto de estudo por Marcio Goldman foi uma contingência de sua carreira acadêmica que se tornou uma especialização, e hoje soma 25 anos de experiência. Durante a graduação trabalhou com o professor Wagner Neves da Rocha em um projeto que começou com a Umbanda e se deslocou para o Candomblé. "Casualmente, devido a uma divisão de tarefas, tive que trabalhar com a possessão e o transe, e depois mantive o tema até o final do mestrado", conta o pesquisador. "Nesses quatro primeiros anos tratava-se mais de uma pesquisa sobre política, mas realizada em um terreiro de candomblé em Ilhéus, no Sul da Bahia, uma pesquisa sobre a visão que as pessoas de lá têm sobre a política". Esse trabalho resultou na publicação do livro Como funciona a democracia – uma teoria etnográfica da política (Editora 7 Letras, Rio de Janeiro, 2006). O que o manteve nessa trilha de pesquisa foi também a admiração pelas pessoas que freqüentam os terreiros. "São pessoas negras, pobres, excluídas, dotadas de uma dignidade impressionante. E talvez sua dedicação e seu envolvimento com potências transcendentes os ajude na preservação dessa dignidade que, para mim, é a coisa mais marcante que encontrei no candomblé - até mesmo do que as belas festas, a comida maravilhosa e toda a estética deslumbrante desse mundo", diz, lembrando que muitos se aproximam do candomblé pela via do sobrenatural. Marcio sublinha que nessa religião as pessoas são produtoras de sua religiosidade. "É uma religião vivida, e não dada por outrem ou por uma doutrina. Não são fiéis ou crentes passivos que recebem um dogma. Eles estão recebendo seus orixás. Além da convicção há uma adesão corporal, física. As festas com a música e a dança, criam um envolvimento sensorial absoluto. Tudo é muito bonito e isso explica, em parte, porque essa religião resiste há tanto tempo. O candomblé cria, para usar uma expressão de Guattari, um território existencial, que pode talvez explicar porque tem resistido no Brasil apesar das perseguições e preconceitos", avalia. A pesquisa de campo e o campo da pesquisaSuas pesquisas de campo fundamentam-se nas práticas de um terreiro de Ilhéus, no Sul da Bahia. "Em 1983, quando procurava um campo para minha pesquisa de mestrado, fui a Ilhéus e conheci o terreiro Matamba Tombenci Neto, muito antigo, fundado em 1885. É um terreiro muito especial, de uma família muito grande, que vivem numa parte do bairro da Conquista. Dona Ilza Rodrigues, a atual mãe-de-santo é o quarto membro da família na liderança, que já foi de sua avó, de seu tio e de sua mãe. É um ótimo lugar para a pesquisa pois engloba várias formas de relação, de parentesco, de vizinhança, de participação política … é uma rede que envolve tudo", explica o antropólogo.O projeto ressalta outros aspectos como a importância do segredo e da magia no candomblé. "O crucial talvez não sejam os grandes esquemas classificatórios ou o aspecto visível e espetacular das belas festas públicas, mas o que é feito em segredo, longe dos olhares dos leigos – as 'manipulações', os 'fuxicos', esse savoir-faire que é a marca distintiva do candomblé, o lugar de uma variabilidade e criatividade que só podem embelezar o culto, afastando-o dos códigos monótonos das grandes religiões. Se a qualificação de 'mágico' pudesse ser esvaziada do conteúdo etnocêntrico daqueles que, no século XIX, e mesmo hoje, negavam ao candomblé sua condição religiosa, talvez ela pudesse ser a melhor designação para esse aspecto do sistema".Mas o segredo no candomblé não significa um obstáculo, mas um desafio à pesquisa de campo. "Não é tão complicado. O candomblé é uma religião iniciática. Só se pode ter acesso a determinados aspectos se você passar pela iniciação. Mas não significa que sem acesso direto, não se chegue a determinadas informações. O trabalho de campo do antropólogo pressupõe ouvir, viver com as pessoas, e muito é passado oralmente. Peço autorização para publicar detalhes pessoais ou fotos", conta, sublinhando que há um paradoxo nisso: "Como é uma religião iniciática o pesquisador pode se iniciar na religião, e muitos antropólogos terminam por se iniciar. Mas se fizer iniciação o pesquisador estará submetido às regras do segredo, e como iniciado não poderá revelar o que passou", diz o antropólogo Marcio Goldman afirmando que ainda não é iniciado no candomblé e que pretende publicar essa pesquisa em livro.O tema, bastante caro aos editores brasileiros, também pode representar outro desafio aos pesquisadores. "Ao tentar escapar do academicismo o autor corre o risco de folclorizar o que estuda, de transformar uma prática viva em uma relíquia de museu. Por isso quero explorar essas dimensões ontológicas, epistemológicas e históricas propostas no título da pesquisa. É uma forma diferente de pensar as religiões afro-brasileiras, reconhecendo que o candomblé nos propõe uma forma de pensar diferente da nossa. Quero mostrar esse caráter vivo, ativo e perturbador, longe de qualquer preservacionismo", promete o professor.Fonte: http://www.faperj.br






Segregação espacial e produção de territórios negros por blocos afro em Ilhéus, Bahia




Ana Claudia Cruz da Silva Universidade Federal de Sergipe - UFSE

A motivação para a redação deste artigo começou surgiu em outubro de 1997, quando pela primeira vez estive em Ilhéus, município do Estado da Bahia, para a pesquisa de campo de minha
dissertação de mestrado. Esta, tinha os blocos afro ilheenses como objeto empírico. Como todo pesquisador deve fazer antes de entrar em seu campo, recolhi algumas informações sobre a cidade; entre elas, o número de habitantes e sua distribuição por “cor/raça”. De acordo com o Censo Demográfico promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 1991 Ilhéus tinha cerca de 220 mil habitantes e a soma das pessoas que se declaravam de “cor ou raça” “parda” ou “preta” (categorias do IBGE) chegava a 85% da população, o que tornava a cidade, sem nenhuma dúvida, majoritariamente negra. No entanto, como observei: se algum [hipotético] turista desavisado fosse do aeroporto diretamente para um dos hotéis de luxo situados na Estrada Ilhéus-Olivença; se passasse uma parte do dia assistindo à emissora de TV local [com seus comerciais]; se, mais tarde, esse turista fosse ao Teatro Municipal de Ilhéus ver um show ou um espetáculo de uma academia de balé da cidade e, por fim, resolvesse terminar a noite num dos restaurantes da Av. Soares Lopes (que acompanha toda a extensão da Praia da Avenida), dificilmente ele perceberia esse fato. (Silva, 1998, p. 51
O fato a que me referi acima é, claro, a percepção quanto à cor da cidade. Os primeiros dias em Ilhéus já me revelaram sua segregação racial: Eu não estava em Ilhéus como uma turista desavisada, mas fui ao teatro logo em meu primeiro dia na cidade. Era um show da cantora Zezé Motta. Como ainda não conhecia ninguém e por tratar-se de uma artista negra, achei que talvez fosse uma boa oportunidade para, ao menos de longe, vislumbrar pessoas que pudessem pertencer a um dos grupos afro. Foi uma decepção: além da atriz/cantora, havia duas ou três pessoas que eu poderia considerar negras na platéia (p. 52).
Durante esse primeiro período de campo, de cerca de três meses, hospedei-me numa pousada bastante simples, no centro de Ilhéus. Quando dizia, tanto na pousada quanto em outros ambientes (como restaurantes ou lojas de artesanato) nos primeiros contatos que fiz, que estava na cidade para estudar os blocos afro e que procuraria primeiro por um deles no bairro da Conquista, era, invariavelmente, advertida sobre a violência do bairro. Mas na maioria das vezes – já que nem todas as pessoas tinham conhecimento dos blocos afro – tinha também a confirmação de que lá eu encontraria o que procurava. Essas primeiras impressões foram ratificadas nas demais viagens que fiz para a pesquisa da tese de doutorado (Silva, 2004):um mês em 1999; oito meses em 2000 e seis meses em 2001 e fizeram parte do meu cotidiano ao longo dos quatro anos em que morei em Ilhéus, de 2004 até meados de 2008, enquanto fui professora visitante da Universidade Estadual de Santa Cruz. Durante quase todo o período de campo para o doutorado e, posteriormente, trabalhando em Ilhéus, residi num mesmo bairro, o Pontal, antiga vila de pescadores, cuja ocupação mais intensiva se dera na década de 1970, após a construção da ponte que o liga à cidade. Ele é a porta de entrada da Estrada Ilhéus-Olivença, cujas margens eram até bem recentemente ocupadas apenas por casas de veraneio, por ser paralela ao mar, e o bairro se tornou local de moradia de uma classe média majoritariamente branca. Como professora da universidade, percebi que este também é um dos bairros preferidos pelos docentes da UFSC para sua moradia. Quase todos os meus amigos do trabalho moravam ali ou em seu entorno, que agora também começa a crescer. Meus amigos não são o meu turista hipotético, mas também não vêem Ilhéus como uma cidade negra. Eles moram num bairro habitado por um número elevado de pessoas brancas; frequentam bares e restaurantes nesse bairro ou em outros semelhantes; não fazem uso, cotidianamente, dos serviços do centro da cidade, pois o bairro dispõe de caixas eletrônicos, de um bom comércio local em termos alimentícios – as melhores padarias da cidade, por exemplo – e outros produtos são comprados no shopping de Itabuna, município vizinho, já que Ilhéus não possui um, ou quando se viaja para grandes cidades; em geral, o transporte para o trabalho é feito em carro próprio ou no ônibus da universidade. Enfim, meus amigos não costumam circular pelos bairros da periferia. Além disso, se ministrarem aulas apenas em cursos considerados “de prestígio”, como Medicina, Direito e Ciências da Computação, quase não terão alunos que se autodeclarem negros (Fiamengue, 2007, p. 64), pois estes estão concentrados nas licenciaturas (p. 37), principalmente naquelas da área de Humanidades. E, embora vários deles nunca tenham ido ao bairro da Conquista – no máximo passam por lá no trajeto noturno de retorno do ônibus da universidade –, eles concebem o lugar como perigoso e sabem a cor de quem eu chamo de “meus amigos da Conquista”.
O bairro do Alto da Conquista é um dos maiores de Ilhéus. O termo “alto” o identifica como uma elevação, com ladeiras íngremes que lhe dão acesso em diferentes pontos da cidade. Embora não haja dados oficiais, pode-se estimar que abrigue 10% da população atual do município , que permanece em torno de 220 mil habitantes . Por sua proximidade do porto de Ilhéus, algumas sub-regiões do Alto da Conquista eram locais de moradia das famílias de estivadores que atuavam na economia cacaueira –principal atividade de Ilhéus desde meados do século XIX até hoje, apesar das constantes crises –, enquanto outras constituíam, até a década de 1960, áreas rurais, ainda que incrustadas no meio urbano. A última grande crise da lavoura cacaueira teve início no final dos anos de 1980 e provocou enorme êxodo rural em toda a região, especialmente nos municípios predominantemente rurais, fazendo o número de habitantes de Ilhéus aumentar em cerca de 60% ao longo de uma década, passando de 131.454 em 1980 para 223.750 em 1991. Esse aumento populacional refletiu, principalmente, nos bairros mais pobres da cidade, sendo a Conquista um deles. Sub-regiões até então pouco habitadas, especialmente as encostas do morro, transformaram-se em favelas, elevando também o índice de pauperização da população e os principais problemas que vêm com ela, como a falta de saneamento e o desemprego.
Bem diferente do bairro do Pontal, o bairro da Conquista é, majoritariamente, negro. Os estivadores eram/são negros em sua maioria, assim como os trabalhadores do cacau que se dirigiram para lá após deixarem o campo, sendo as duas ocupações historicamente predominantes entre as famílias mais pobres de Ilhéus. Outro indicativo da ‘negritude’ do bairro é o Clube 19 de Março, originalmente um clube de dominó fundado nos anos de 1960, ao que parece, um tipo de organização comum no interior da Bahia. Propriedade de família negra, com a maior parte de seus sócios negros, o Clube 19 de Março é, ainda hoje, um espaço de lazer voltado para a população negra e, também por isso, escolhido para abrigar o Memorial da Cultura Negra nos dois anos de seu funcionamento (2002-2004) . Na época da pesquisa havia quatro blocos afro na Conquista, um bloco de maculelê e, pelo menos, oito terreiros de candomblé. No Pontal também há terreiros de candomblé: são dois, mas ambos localizados numa sub-região considerada mais pobre do bairro – Nova Brasília – que permanece com características de vila de pescadores e só bem mais recentemente começou a ser ocupada por construções de classe média. A segregação racial nunca foi exatamente uma preocupação em minha pesquisa, mas esteve presente em toda a minha relação com a cidade. Isso não ocorreu porque em Ilhéus a segregação seja maior que em outras cidades brasileiras, mas porque a etnografia realizada junto aos blocos afro tornou-a patente tanto em função da concepção de suas atividades como ações contra a segregação – ainda que nem sempre concebida como racial –, quanto pelas experiências cotidianas de seus membros, fazendo com que também minhas experiências pudessem ser enxergadas por esse viés. O que proponho neste trabalho é mostrar, a partir dessa pesquisa junto aos blocos afro de Ilhéus, como a constituição de formas de organização baseadas em cultura negra tem relação direta com a segregação espacial imposta a um enorme contingente da população afrobrasileira. Não se trata de defender uma relação de causa e efeito, o que levaria a estabelecer uma lei do tipo: segregação produz grupos afroculturais. Se assim fosse, certamente teríamos um número muito maior desses grupos no país. Contudo, não é possível ignorar que a produção de práticas denominadas “de cultura negra” no interior da sociedade ocidental se dá em conexão com os (o que não é a mesma coisa que dizer como consequência dos)efeitos do sistema capitalista, que produz um tipo de segregação que pode ser racialmente caracterizado e do tipo de subjetividade por ele produzida: a capitalística (Guattari e Rolnik, 1996, p. 42), sobre a população negra. Contra esse tipo de subjetividade, os blocos afros, assim como outros grupos negros, produzem uma “subjetividade dissidente” (Guattari, 1986); nesse caso, uma subjetividade negra. Porém – é importante ressaltar mais uma vez –, esta não é naturalmente produzida em espaços de concentração de população negra. Tornarei esses conceitos mais claros adiante.
Trata-se, pois, de articular analiticamente, tendo por base uma pesquisa etnográfica, duas dimensões do espaço relacionadas ao bloco afro (e a tantos outros grupos negros) que não costumam ser pensadas em conjunto: a do lugar onde se vive e a do lugar que se produz o onde se vive. Definindo a primeira, temos os altos índices de violência e a falta de saneamento, de emprego, de transporte, de lazer e tantas outras mazelas sociais; para a segunda dimensão, temos a produção de “territórios negros” no sentido dado por Raquel Rolnik (1989): os blocos afros, os terreiros de candomblé e outros espaços que produzem um jeito negro de viver. A partir do foco sobre o Grupo Cultural Dilazenze, um dos blocos afros situados no bairro da Conquista, desejo mostrar que no mesmo espaço onde se considera “natural” a presença de um bloco afro e de um antigo terreiro de candomblé, em função da grande maioria de moradores negros, tem-se, também, vários problemas sociais. Enquanto o bloco afro e o terreiro são pensados como “coisas de negros”, não se costuma pensar esses problemas como “coisas para negros”, isto é, problemas que atingem muito mais a população negra. Segundo a tese defendida pelos pesquisadores do Projeto Unesco, na década de 1950, de que, no Brasil, a desigualdade econômica é a fundamental e não a racial, não há entre essas proposições uma relação causal; elas admitem apenas uma relação conectiva, ou seja, há uma maioria populacional negra e há problemas socioeconômicos, causados por uma dada ordem histórico-econômica: a escravidão e sua abolição considerada relativamente recente. Conforme Guimarães (2004, p. 24): [...] a geração dos anos 1950 e os seus discípulos nos anos 1960 estudaram e discutiram o preconceito de cor e o preconceito racial [...]. A expectativa geral era de que o preconceito existente seria superado paulatinamente pelos avanços e pelas transformações da sociedade de classes e pelo processo de modernização.
O fato de que “[em] 2006, entre os 10% mais pobres da população, 63,4% eram negros; de que esta proporção cai para 24,3% no grupo dos 10% mais ricos” e que “no grupo do 1% mais rico da população, somente 14,1% eram de indivíduos negros.” (Ipea; Unifem; SPM, 2008), por exemplo, seria uma contingência histórica provocada por um fenômeno econômico. Assim, bastaria esperar que o tempo e a economia mudassem a situação que provocaram. Ramos e Cunha Jr. (2007, p. 188), referindo-se aos estudos de urbanismo no Brasil, chamam a atenção para o fato de que bairros de maioria de população afrodescendente são chamados de “populares”, ou de “bairros de classes populares”, ficando a questão racial predominantemente ausente dos enfoques. Hasenbalg afirma que “a ausência, no Brasil, de guetos raciais nitidamente delineados tem levado, com frequência à ideia de que existe nos espaços urbanos uma segregação residencial das classes sociais, mas não dos grupos raciais” (1996, p. 240). Poder-se-ia generalizar a observação de Ramos e Cunha Jr. para outros campos de conhecimento, exceto por alguns trabalhos, especialmente nas áreas de economia e de sociologia, que afirmam a existência de desigualdades raciais no Brasil e apresentam dados sobre segregação . No entanto, dizer que há quatro blocos afros no bairro da Conquista porque a população negra é predominante neste lugar não parece nenhum absurdo, pelo menos de acordo com uma espécie de senso comum, também compartilhado por alguns estudiosos do tema, que estabelecem uma relação, só aparentemente óbvia porque concebida como ‘natural’ (às vezes, biologicamente falando), entre cultura afrobrasileira e população afrodescendente. A existência de quatro blocos afros e oito terreiros de candomblé na Conquista seria fruto de uma dada ordem cultural.
Em ambas as visões, cultura e economia são concebidas como esferas autônomas da vida social. O máximo de relação que se admite estabelecer entre elas é a transformação da cultura em produto que pode gerar emprego e renda, proporcionando, assim, “inclusão social”, “autossustentabilidade financeira” etc. Dessa forma, admite-se a situação de pobreza da população dos bairros periféricos, mas não a de segregação racial, embora seja pela via da cultura negra aí produzida que se espere que essa pobreza seja superada. Tais concepções negam a conexão sempre existente entre a situação socioeconômica, a cor, o lugar de moradia e as histórias pessoais. Em função das políticas de ação afirmativa de cunho racial, adotadas e debatidas no país atualmente, declarações que desvinculam cor e desigualdade por parte daqueles que são contrários a essas políticas têm sido frequentes. Com elas, a negação da existência de racismo no Brasil, ou até sua admissão, mas como atitude individual, sentimento ou prática que parte deste e atinge somente um ou outro (e não como problema sofrido por, pelo menos, metade da população brasileira) porque é exercido por um sistema político-econômico. Antes de continuar, é importante esclarecer que sou eu quem está denominando de racismo a segregação que ocorre em Ilhéus. Nem sempre as pessoas que moram em tais lugares percebem a segregação como sendo racial. Também concebendo o racismo como algo que ocorre apenas entre indivíduos, elas podem senti-lo quando se apresentam nos shows dos blocos afros em hotéis de luxo e são maltratadas; quando entram em uma loja e são observadas com desconfiança e mal atendidas; quando vão a um restaurante nas zonas mais ricas da cidade acompanhadas pela antropóloga branca e, no final, ao contrário do que costuma acontecer quando há homens à mesa, a conta é dada a ela, e não aos homens presentes, se estes forem negros. Elas podem perceber a situação de seu bairro como ‘exclusão social’, termo que, muitas vezes, encobre a questão racial. Mas trata-se de racismo institucional: A discriminação racial também pode ser resultante de mecanismos discriminatórios que operam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos. A essa modalidade de racismo convencionou-se chamar de racismo institucional ou, ainda, de racismo estrutural ou sistêmico. A grande inovação que este conceito traz refere-se à separação das manifestações individuais e conscientes que marcam o racismo e a discriminação racial – tal qual conhecido e combatido por lei – e o racismo institucional, que atua no nível das instituições sociais. Esse último não se expressa por atos manifestos, explícitos ou declarados de discriminação, mas atua de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, que operam de forma diferenciada na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes grupos raciais. Diz respeito às formas como as instituições funcionam, seguindo as forças sociais reconhecidas como legítimas pela sociedade e, assim, contribuindo para a naturalização e reprodução da hierarquia racial (Ipea, 2008, p. 7).
Sintetizando, esta análise relaciona as práticas e concepções dos blocos afro de Ilhéus/BA – a ordem cultural – com a segregação racial por eles vivida – a ordem econômica. Ou, dito de outra forma, mostra de que modo a produção de um território negro como lugar de produção de subjetividade negra se dá buscando mudar as condições sociais que impõem um território negro como lugar de segregação racial. O território tem cor e é negro
Ilhéus, assim como tantos municípios brasileiros, sofre de graves problemas sociais. Apenas a título de exemplo, seu Índice de Desenvolvimento Humano Municipal – IDH-M em 2006 era de 0,703, classificado como baixo e lhe dá o 22º lugar entre os municípios baianos . Problemas como falta de saneamento básico, pauperização geral da população, degradação ambiental em função das ocupações e desemprego tornaram-se ainda mais graves para Ilhéus, com as consequências da última crise da lavoura cacaueira, iniciada no final da década de 80, que vem provocando um efeito devastador sobre a região. Seria ingenuidade supor que a vassoura-de-bruxa (praga que atinge os cacaueiros) é a única responsável pelo processo de pauperização desses municípios, como se as conjunturas econômicas nacional e internacional não tivessem nele participação. Entretanto, é inegável que a velocidade e a força desse processo se devem à estrutura econômica baseada na monocultura do cacau existente desde o século XIX. Embora não haja dados desagregados em relação à cor, é legítimo supor que os problemas sociais que assolam Ilhéus atingem em cheio a população negra; seja porque os índices nacionais mostrem esta mesma relação , seja porque a simples observação a olho nu dos bairros situados na periferia da cidade permita perceber que eles são ocupados quase que totalmente por essa população e que o desemprego, o analfabetismo, a falta de saneamento etc., estão concentrados neles. O bairro da Conquista é um bom exemplo disso. A reflexão sobre a noção de gueto pode ajudar a entender os processos que incidem sobre locais como a Conquista. Certamente não se trata de um gueto no sentido que em geral é atribuído aos locais de segregação racial nos Estados Unidos. No entanto, no presente estudo o conceito de gueto pode ajudar a pensar a situação do bairro de maneira diferente, retirando dela o viés exclusivamente econômico para dar-lhe também uma conotação racial: se há aí quatro blocos afros porque a população que habita o bairro é majoritariamente negra, a situação econômica experimentada por essa população também deve ser vista pelo mesmo prisma. Wacquant (1995) define o gueto negro americano como um “universo racial e culturalmente homogêneo, caracterizado pela baixa densidade organizacional e pela pequena penetração do Estado” (p. 67). O bairro da Conquista se aproxima dessa definição, mas estaria mais próximo, segundo a descrição de Wacquant, de outro espaço que ele compara com o gueto americano: os bairros proletários de imigrantes em Paris, as cités. O mundo das cités é dominado pelo sentimento de exclusão que [...] se manifesta em referência aos temas da reputação e do desprezo. As diversas cités são hierarquizadas numa escala da má fama que afeta todos os seus aspectos (...) e cada um de seus moradores. As cités sofrem de um verdadeiro estigma. (Dubet e Lapeyronnie, 1992, p. 114 apud Wacquant, 1995, p. 68).
Wacquant ressalta que, dessa perspectiva, as cités parisienses não seriam guetos. Não são uma “formação socioespacial que é racial e culturalmente homogênea, baseada na relegação forçada a um território específico, de uma população destacada em termos negativos” (p. 80). É a estigmatização o que afeta todos esses lugares. Ainda segundo Wacquant, “o estigma é a característica mais saliente da experiência vivida por aqueles que se encontram encurralados nestas áreas” (p. 68). No caso da Conquista, talvez o sentimento de ser estigmatizado devido ao local de moradia não seja a “característica mais saliente”, em função da produção desse espaço como território negro no sentido exposto anteriormente, da relação estabelecida com ele a partir da memória e da vivência cotidiana. Especificamente para o Grupo Cultural Dilazenze, o bloco afro de maior visibilidade de Ilhéus, formado, basicamente, por uma extensa família que ocupa a sub-região da Conquista conhecida como Carilos, no mínimo, desde o início da década de 40, essa relação ainda é fortalecida pela presença do terreiro de candomblé de Matamba Tombenci Neto. Embora a relação de ancestralidade remonte a origem do terreiro a 1885, ele funcionava em outro ou outros locais e foi estabelecido onde funciona hoje nessa mesma época a partir da aquisição de uma chácara pelos pais da atual mãe-de-santo que, por sua vez, é mãe carnal dos fundadores do Dilazenze. A construção de moradias para os filhos e, posteriormente, para os netos, além de dificuldades financeiras que exigiram o loteamento da chácara e a ocupação por outras famílias, fizeram com que o terreno onde se localiza o terreiro fosse bastante reduzido; porém, suas histórias, suas referências, assim como as histórias das pessoas, “atravessam as paredes das casas”, as novas ruas abertas e se projetam nos antigos cenários: “ali onde é a rua [tal], ficava a bica onde as muzenzas (iaôs) tomavam banho de madrugada” e, a partir daí, várias histórias engraçadas, explicativas dos rituais religiosos do terreiro, de saudades dos que já faleceram; “as obrigações eram feitas ali, aos pés da jaqueira, onde hoje está a quadra do Dilazenze...”; “quando ‘vô’ ia brigar com a gente, a gente corria para o jaqueiral, que ficava ali, perto do campo...”. É claro que a criação de relações afetivas com o lugar em que se vive não é 1exclusividade dos moradores da Conquista. Mesmo em situações de habitação bem menos agradáveis, é comum que tais relações ocorram, como demonstra Brandão (2004) em sua pesquisa em bairros periféricos dos municípios de São Gonçalo e Itaboraí, ambos no Estado do Rio de Janeiro, denominando essa relação de “identidade local” (p. 138). Mas também é certo que “gostar do lugar onde se vive” não significa ausência do sentimento de estigmatização em relação a ele, que, no caso da Conquista, pode não ser constante, mas está presente em vários momentos. E, em alguns deles, a questão racial salta aos olhos. Rolnik (1989) mostra como, no Brasil, a estigmatização sempre acompanhou os “territórios negros”, fossem eles a senzala, o cortiço ou favela, para usar seus exemplos: A história da comunidade negra é marcada pela estigmatização de seus territórios na cidade: se, no mundo escravocrata, devir negro era sinônimo de subumanidade e barbárie, na República do trabalho livre, negro virou marca de marginalidade. O estigma foi formulado a partir de um discurso etnocêntrico e de uma prática repressiva: do olhar vigilante do senhor na senzala ao pânico do sanitarista em visita ao cortiço; do registro esquadrinhador do planejador urbano à violência das viaturas policiais nas vilas e favelas (p. 39).
Desde minha primeira visita a Ilhéus, ainda em 1997, fui alertada pelos funcionários e dono da pousada em que fiquei hospedada sobre os riscos de ir à Conquista por ser um bairro “violento”. Em 2000 e 2001, alguns eventos envolvendo adolescentes da região onde está situado o Dilazenze aumentaram a conexão entre violência e Conquista: assaltos e disparos de arma de fogo seguidos de morte ,em algumas poucas situações, passaram a fazer parte da rotina das pessoas por algum tempo. Eles não eram diários, mas eram entendidos dessa forma pelas pessoas que, ao menos idealmente, diziam mudar seus hábitos em função do perigo: evitavam ficar até mais tarde nas calçadas conversando, deixar as crianças brincando na rua à noite ou passar por locais ditos mais perigosos... Assim, tanto na Conquista quanto no gueto americano estudado por Wacquant (1994), a violência é cometida por moradores contra moradores. A descrição deste autor para as condições de promoção da violência no gueto bem poderia ser apropriada para a Conquista: “a disponibilidade combinada de armas, prolongada exclusão do trabalho assalariado e difusão do tráfico de drogas modificou as regras do confronto masculino nas ruas, de forma que fornecem combustível à escalada dos crimes de morte” (p. 107). Antes desses eventos, a sub-região do Dilazenze não era listada entre as mais violentas do bairro e, quando algum furto ou assalto ocorria lá, era dito ser provocado por rapazes de outras sub-regiões consideradas mais pobres. Mas em 2000 e, ainda mais fortemente em 2001, a Avenida Brasil, endereço do grupo, passou a ser um local a ser evitado por entregadores de bebida, de pizza e de gás, além de taxistas e outros. Durante certo período, dois adolescentes cobravam “pedágio” dos entregadores e quando estes se recusavam a dar, eram assaltados. Eu mesma passei a ter um horário para ir embora, pois, além da escassez do transporte coletivo , taxistas se recusavam a ir até o local. Somente os “conhecidos” aceitavam fazer esse percurso e, obviamente, valorizavam ainda mais seu trabalho por isso, o que só reforça o estigma. Tal como ocorre no gueto, também há “subclassificações” do bairro na Conquista: [os moradores do lugar] lançam mão de taxonomias próprias para organizar o cotidiano, diferenciando diversas subunidades no interior do conjunto como um todo que, com efeito, possui um significado apenas administrativo e simbólico – ainda que com consequências palpáveis. (Wacquant, 1995, pp. 68-9).
Nesse mesmo movimento de diferenciação interna, as pessoas “exageram seu valor moral como indivíduos (ou como membros da família)” (p. 75) e acabam por assumir o discurso de fora que reforça o estigma do local. No caso do Dilazenze, eram comuns os comentários de reprovação, especialmente de rapazes, a respeito da abordagem da polícia nas ruas da Conquista, até mesmo “em frente de nossas próprias casas”, diziam. Mas, ao mesmo tempo em que havia um sentimento de “injustiça” e de “discriminação” – nunca explicitamente racial – em relação à ação da polícia, essa era, às vezes, justificada pelas atitudes de outros moradores – no caso dos adolescentes e daqueles que os acobertavam: “É por causa desse tipo de pessoa que a gente passa por isso”. Mas tal investimento na diferenciação interna pode ter como corolário o desprezo e a acusação de “querer ser o que não é”. Wacquant diz que no caso do gueto negro americano, quem tenta “avançar na estrutura de classes” e sair do gueto é acusado de “querer tornar-se branco” (1995, p. 77). Na Conquista, dizer que uma pessoa é um “um negro metido a besta” tem o mesmo significado e diz respeito a alguém que quer distanciar-se de “sua origem”. Referindo-se a um conhecido que se destaca na política local, uma das pessoas do grupo disse que “ele sempre se vestiu diferente, (...) sempre trabalhou com a elite, sempre se comportou como tal, embora sua família sempre tenha sido pobre, moradora da Conquista...”. E isso o faz ser considerado alguém não exatamente de dentro, não confiável. No Dilazenze, essa diferenciação interna é necessária também em função do fato de que o grupo, assim como o terreiro ao qual está diretamente vinculado, tem uma relação para fora do bairro e sua sobrevivência enquanto grupo depende dela; por exemplo para contratações de apresentações em hotéis e em eventos turísticos da cidade. Assim, o presidente do Dilazenze na época da pesquisa buscava valorizar moralmente o grupo ressaltando, sempre que podia, que este não tinha nenhuma relação com elementos considerados parte do estigma atribuído aos jovens da Conquista: “drogas”, “indisciplina”, “marginalidade”. Dois dos adolescentes responsáveis por aquele momento de violência dos anos de 2000 e 2001 eram filhos da mestre de bateria mirim do Dilazenze e um deles já havia sido assistente do mestre de bateria principal. Tendo se afastado do grupo por conta própria, numa tentativa de retorno, ele foi “desaconselhado” a isso pelos dirigentes. Investir na diferenciação em relação ao espaço não basta, entretanto, pois o estigma imputado à sub-região do Dilazenze atinge diretamente as atividades do grupo e do terreiro, provocando o esvaziamento dos eventos promovidos por eles. No período de violência mais intensa, era notória a pequena quantidade de pessoas assistindo às festas do terreiro. Quanto ao grupo, seu presidente pensava que era melhor não promover nada, “pois ninguém compareceria”. O bar existente na quadra da sede do Dilazenze, que poderia render recursos para o grupo, assim como para quem o administrasse, permanecia fechado. É claro que havia outros motivos para isso, mas, naquele momento, o motivo mais fortemente alegado era o perigo que o funcionamento do bar poderia representar para os moradores por ser um local de aglutinação de pessoas e a expectativa de pouco movimento. Esta também é uma característica comum ao gueto, como diz Wacquant: “acima de certo limiar, a onda de crimes violentos torna impossível a operacionalização de uma atividade comercial no gueto e assim contribui para o esvanecimento da economia baseada no trabalho assalariado” (1998, p. 216). Mas este, sem dúvida, não é um problema que atinge apenas o Dilazenze. É possível afirmar que todos os blocos afros da cidade sofrem com a violência local e com o estigma atribuído a seus bairros. O Rastafiry (pronuncia-se Rastafari), outro bloco afro da Conquista, sofre muito com a estigmatização de sua sub-região, a mais central do bairro e mais visada como ponto de venda de drogas. Acrescente-se a isso seu nome e sua característica de bloco afro ligado ao reggae e que tem Bob Marley como um de seus símbolos. E o mesmo ocorreu com o Olodum, um dos mais famosos blocos afros do país, internacionalmente conhecido, antes da revitalização urbana do Pelourinho, em Salvador. Outras características do gueto, apresentadas por Wacquant (1995, p. 115), são observáveis na Conquista: como a predominância da economia informal e a dependência da rede de parentesco e de benefícios sociais, como a previdência, ou filantrópicos, como a cessão de cestas básicas por parte do governo municipal e de “ajuda” de igrejas e/ou outras organizações. Na Conquista, uma vez por semana, à noite, a igreja católica do bairro distribuía um sopão. A distribuição acontecia na Avenida Brasil, próximo à sede do Dilazenze. Os adultos da família costumavam dizer que não eram eles nem seus vizinhos mais próximos que faziam uso dessa ajuda; mas conheciam “muita gente que precisa mesmo e que mora[va] aqui perto”. As pessoas podiam não “precisar” da sopa, mas a distribuição consistia num programa para as crianças da família, pois nos dias marcados, esperavam com ansiedade o momento de pegar a sopa e tomavam-na com um apetite que, diziam seus pais, não costumavam ter para “a comida de casa”. Outra observação de Wacquant diz respeito à impossibilidade de as pessoas de saírem do gueto devido à falta de investimento do Estado em moradias populares fora dele (1995, pp. 122-3). Em Ilhéus, pode-se dizer o mesmo em função das poucas políticas de habitação voltadas para a população de renda mais baixa, o que faz com que as pessoas tenham de construir suas casas nos terrenos da própria família (em geral, constroem-se casas de dois ou mais pavimentos ou ocupa-se todo o terreno disponível – como é o caso da família do Terreiro Tombenci Neto: dos quatorze filhos carnais da mãe-de-santo, oito deles têm, no momento, casas construídas no terreno, que não é grande e, por isso, algumas constituem sobrados).
Relegando os conjuntos habitacionais ao abandono tanto em relação ao seu estado físico quanto à presença e à eficiência das instituições públicas, o Estado perpetua as condições que promovem a segregação, como a violência, a informalização da economia, a falta de acesso à saúde e à educação, o desemprego. É o que Wacquant chama de “efeito multiplicador” da segregação, que reforça tudo o que a provoca (1995, p. 120). Ao mostrar que o gueto é o produto de determinadas ações políticas que envolvem raça, classe e espaço urbano (p. 102), ressalta que o “isolamento [racial] (...) não é uma expressão de afinidade e escolhas étnicas” (p. 120). Não se trata, de forma alguma, de desracializar o gueto, mas pensá-lo como se fosse uma opção retira de cena o processo histórico que o constituiu, naturalizando-o:
encobre-se assim o fato de os negros serem o único grupo que passou pela experiência da “guetização” na sociedade norte-americana, isto é, uma separação residencial total, permanente e involuntária, fundada na casta como base para o desenvolvimento de uma estrutura social paralela (e inferior). (Wacquant, 1996, p. 147 – grifos do autor).
A concentração de população negra no bairro da Conquista também não é resultado de uma opção das pessoas, mas fruto de um processo histórico, racista desde sua origem. E se a situação em que o bairro se encontra pode ser aproximada – a partir dos mesmos problemas e sentimentos – dos guetos norteamericanos, isso acontece em função de um racismo que permanece ativo. Contudo, é nesse espaço que podem ser concebidas propostas de mudança, a partir de sua afirmação como “território negro”. Para a cidade, território marginal é território perigoso, porque é daí, desse espaço definido por quem lá mora como desorganizado, promíscuo e imoral, que pode nascer uma força disruptora sem limite. Assim se institui uma espécie de apartheid velado que, se, por um lado, confina a comunidade à posição estigmatizada de marginal, por outro, nem reconhece a existência de seu território, espaço-quilombo singular. (Rolnik, 1989, p. 39).
A adoção do ponto de vista de que um local de população predominantemente negra constitui um “território negro”, entendido segundo Rolnik (1989), enquanto autorrepresentação e identificação de história e práticas culturais comuns, pode se transformar num instrumento de luta e mobilização política. Para que isso aconteça é, claro, necessário, que o local apresente o estigma racial mediando sua relação com um fora que é acionado em determinados momentos.
O bloco afro como território negro
Os blocos afros são grupos carnavalescos surgidos em meados da década de 1970 em Salvador, capital do estado da Bahia, que têm na cultura negra a fonte dos elementos utilizados em sua caracterização: sua música, seus temas, sua vestimenta etc. Podem, por isso, ser definidos como entidades que têm por objetivo a “preservação da cultura negra”, como seus membros costumam dizer, sendo sua principal atividade desfilar no carnaval utilizando elementos oriundos do que se denomina “cultura afrobrasileira”.
Agier (1992) desenvolve a ideia de que ocorreu em Salvador o surgimento de um “movimento social e identitário” (p. 56) novo a partir de mudanças políticas, econômicas e culturais no fim dos anos de 1970. A fim de dar compreensão ao que chama de “atual movimento de identidade afrobaiana”, este autor defende que os blocos afros e afoxés são “espaços sociais negros”, ou seja, instituições e espaços também fisicamente marcados, e percebidos como locais de refúgio pela população negra. Nele, é “bom assumir a negritude” [...]é possível sentir-se respeitado (p. 64). A imagem do gueto apresenta-se também aqui; mas de maneira positivada do ponto de vista da luta contra o racismo. Para Agier, a constituição desses “espaços urbanos próprios, reapropriados ou liderados por negros” (p. 109) são uma forma de olhar e de se situar diante da “sociedade global” e expressam uma “identidade política” que atua através de uma “perspectiva de gueto” frente ao racismo de integração/dominação da elite baiana . Como diz Agier: Essa perspectiva pode ser verificada nas tendências mais recentes do movimento negro político no Brasil. Nelas se desenvolvem, em vez de um discurso favorável à assimilação (era o lema da Frente Negra nos anos trinta) ou simplesmente contra a discriminação (tema do MNU – dos anos setenta), diversas tentativas para destacar, na sociedade, um espaço próprio para os negros: busca de territórios próprios, apoio a experiências educacionais autônomas, além da inclusão, nas fronteiras do ‘movimento negro’, dos grupos culturais e religiosos afro-brasileiros. O diálogo com a sociedade global se torna aparentemente menos importante do que o inventário de práticas e instituições rotuladas como ‘negras’. (p. 113).
As formulações de Wacquant para o gueto norteamericano assim como para as cités parisienses ajudaram a pensar as condições de vida da população residente na Conquista em relação com o fato da maioria dessa população ser negra, sem que fosse preciso pensar esse bairro como gueto. Da mesma forma, tomando emprestada a Agier a ideia de atuação dos blocos afros a partir de uma “perspectiva de gueto”, é possível pensar desse ponto de vista o desejo dos grupos afroculturais de Ilhéus de produção de uma identificação entre o bloco, seu espaço/comunidade/bairro e a questão racial. Em algumas situações – pois esta não é uma ideia fixa, presente durante todo o tempo – os grupos assumem que fazem parte e que estão situados em zonas segregadas da cidade, onde existe uma dimensão racial fortemente colocada, e investem esforços no sentido de suscitar na população aí residente outra forma de olhar para esses lugares e/ou de se posicionar perante a cidade.
Além de várias outras dimensões, as atividades realizadas pelos blocos afros em suas sedes – ou na rua da sede ou, nos casos dos blocos que não possuem sede, na casa do presidente e/ou fundador (que em geral é a referência do bloco e seu endereço oficial) – são justificadas pela necessidade de dar opções de lazer à população. Um argumento bastante utilizado pelos dirigentes dos grupos é o de que as pessoas “não se sentem à vontade” para frequentar espaços de lazer no Centro da cidade, por exemplo. Em 2001, durante a gravação de um programa sobre preconceito pela TV local, três dirigentes de blocos afros foram entrevistados. Em suas respostas, todos identificaram a segregação espacial, embora não tenham usado tais termos, como o maior problema da população negra em Ilhéus. É claro que não há nenhuma proibição real que impeça as pessoas de frequentarem este ou aquele lugar, mas há “o receio de que você não seja bem visto nesses lugares. Você não vai para evitar um problema maior, um constrangimento”, segundo um dos dirigentes. Ou, ainda, como disse um dos dirigentes recentemente, “há lugares em que você só vai para trabalhar”, referindo-se a estabelecimentos que contratam os espetáculos dos grupos afros, especialmente na alta temporada do turismo. Em determinados locais de lazer no Centro da cidade e em bairros considerados de moradores de renda mais alta, como é o caso do Pontal, é notória a ausência, ou a baixa frequência, de pessoas negras. É certo que o fator falta de recursos financeiros é preponderante, mas não justifica tudo: pode-se gastar tanto dinheiro num bar “perto de casa” quanto se gastaria num bar no Centro, mas o primeiro é sempre preferível ao segundo, pois aí as pessoas “se sentem à vontade”. Assim, apresentações de dança, teatro, palestras e, especialmente, shows de blocos afro devem ser realizados na Conquista para que as comunidades dos grupos compareçam, costumam dizer os dirigentes dos blocos. Por outro lado, esta percepção de segregação leva ao argumento oposto: de que os shows devem ser feitos no Centro para que as pessoas das comunidades – “os negros”, como dirigentes e representantes do governo costumam dizer quando estão falando da população negra – entendam que a cidade também lhes “pertence” e para que “elas possam se sentir melhor em sua própria cidade”. Essas visões não variam de grupo para grupo, nem mesmo de dirigentes para dirigentes dentro de um mesmo grupo, mas de evento para evento, às vezes tratando-se da mesma pessoa. As reuniões para planejamento das atividades da Semana da Consciência Negra são momentos especialmente interessantes para refletir acerca de identificação étnica e espaço. Em 1997, a organização da Semana Nacional da Consciência Negra esteve a cargo, principalmente, do Conselho de Entidades Afro-Culturais (CEAC), do qual os blocos afros fazem parte, embora tenham contado com participações pontuais da Pastoral Afro, vinculada à Igreja Católica, e com o “apoio” do governo municipal, mediado pelo gerente de Ação Cultural, da Fundação Cultural de Ilhéus (FUNDACI), e pelo subsecretário de Esportes, ambos, nesta época, representantes de grupos afros. Numa das reuniões de preparação para as comemorações do dia 20 de Novembro, dia dedicado a Zumbi dos Palmares e dia também do evento mais importante da Semana, um longo tempo foi destinado à discussão de onde deveria ser realizado o show dos blocos afros e a exposição de fotos da história do movimento em Ilhéus: se fosse no Centro, na Praça da Catedral de São Sebastião, as comunidades não iriam, mas as atividades teriam maior visibilidade, o que seria bom para o fortalecimento do “movimento afrocultural”; se fosse na Conquista, “por ser o bairro com maior número de blocos afros” e, consequentemente com o maior número de pessoas vinculadas aos blocos, seria possível aglutinar muito mais gente para assistir ao espetáculo, porém, a repercussão na cidade seria pequena. Tanto num caso quanto no outro os argumentos versavam sobre a melhor maneira de se elevar o sentimento de “autoestima” da população negra de Ilhéus: se o show fosse no Centro, o evento poderia ter repercussão na TV e nos jornais, pessoas de todos os bairros poderiam comparecer, a “cidade toda ficaria sabendo”... a população negra de Ilhéus se sentiria prestigiada; se o show fosse na Conquista, o bairro teria visibilidade na cidade, haveria um número muito maior de espectadores, seria um evento de lazer para uma população que quase não o tem... a população negra de Ilhéus se sentiria prestigiada – de qualquer forma, este deveria ser o objetivo mais amplo a ser alcançado: Semana da Consciência Negra é o momento de prestigiar a quem é desprestigiado o resto do ano. A conclusão foi de que o evento deveria ocorrer na Praça da Catedral, no Centro da cidade.
Já em 2001, além dos blocos afros, o governo municipal, através da Secretaria de Esporte e Cidadania, e a Igreja Católica, através da Alufá-Gê (Associação do Resgate da Identidade e da Cultura Negra e Necessitados), associação vinculada à Pastoral Afro, tiveram uma participação bem mais efetiva na organização da Semana da Consciência Negra. Um dos representantes da Alufá-Gê, que é padre e se considera negro, propôs a realização de uma missa em estilo afro numa igreja situada no bairro da Conquista, próxima à quadra do Dilazenze, em função dos vários blocos afros sediados neste bairro e de seus membros. O presidente do Dilazenze, que atuava como representante dos blocos, argumentou que todas as atividades deveriam ser realizadas na Conquista dada a facilidade de aglutinar pessoas e de proporcionar a “participação da comunidade”, o que não ocorreria se as atividades fossem realizadas no Centro. Ambas as propostas foram resultado de uma conversa particular entre eles, ocorrida previamente à primeira reunião de preparação. Nessa ocasião, já com a presença de outros participantes, inclusive do secretário municipal de Esporte e Cidadania, a proposta de que todas as atividades ocorressem na Conquista não foi aceita imediatamente. Primeiramente o secretário – que se considera branco – disse que preferia que as palestras que ele estava sugerindo, de pessoas famosas e que atrairiam, segundo ele, um bom público, acontecessem no Centro de Convenções Luiz Eduardo Magalhães, cujo auditório maior tem capacidade para mil lugares. Argumentou que era preciso “pensar grande”, que as pessoas dos blocos pareciam estar “com medo quanto à sua capacidade de colocar muita gente no Centro de Convenções”. Para contrapor-se a ele, o representante dos blocos afros retomou uma posição do padre a respeito da dificuldade das pessoas de “assumirem sua negritude”, justificando que, embora a população negra de Ilhéus fosse muito grande, isso não significava que todas as pessoas “tivessem vontade de ouvir alguém falar sobre questões relacionadas ao negro”. Enquanto o secretário insistia em que as atividades não deveriam ser na Conquista, algumas mulheres da Alufá-Gê presentes à reunião faziam sinais de apoio à ideia – sorriam e balançavam a cabeça em sentido vertical. Não chegaram a argumentar nada, talvez porque não quisessem discordar diretamente do padre. Quando o assunto foi encerrado com a decisão final de realizar todos os eventos na Conquista, uma das mulheres, com ar de decepção e como se fosse uma última tentativa de argumentação, disse que todas as atividades deveriam ocorrer “bem cedo [no início da noite] porque lá na Conquista é muito perigoso”.Isso explicava sua torcida para que os eventos não fossem realizados no bairro. Seu comentário, obviamente, foi baseado no estigma atribuído ao local.
O bloco afro constitui um território negro também em outro sentido. É amplamente difundida a ideia de que a categoria ‘negro’ foi construída pela escravidão, que aboliu origens e transformou a todos em escravos, escravos vindos da África, escravos negros. Segundo Rolnik (1989), a ideia de ser negro surgiu e se desenvolveu na senzala: “o confinamento na terra de exílio foi capaz de transformar um grupo – cujo único laço era a ancestralidade africana – em comunidade” (p. 30). A senzala foi o primeiro território negro. Ao longo do tempo, foram surgindo outros, sendo o quilombo o mais representativo deles, pois propunha uma forma de pensar e interagir com a sociedade nacional como grupo distinto, formado a partir da experiência singular e violenta da escravidão. E o espaço do quilombo, assim como o da senzala, era o lugar de produção de um modo de existência também distinto. A associação entre bloco afro e território negro é recorrente nos meios militantes e acadêmicos, surge em artigos, palavras de ordem ou em letras de música. Guerreiro afirma que a “noção de territorialidade é uma marca das organizações afros de Salvador” (1998, p. 112) e que esses territórios “funcionam como local do encontro, da troca, das elaborações simbólicas que permitem a construção das identidades” (p. 119). Michel Agier diz que depois da criação do Ilê Aiyê –primeiro bloco afro –, o bairro da Liberdade passou a ser chamado de “novo quilombo” (2000, p. 63); o Curuzu, sub-bairro onde está situado o grupo, é a “nova senzala”; a sede do Ilê tem o nome de “Senzala do Barro Preto” (significado do termo Curuzu). Ainda segundo Agier, os blocos afros são “espaços negros urbanos” definidos a partir de limites constituídos por “traços físicos, sociais ou culturais” que formam “fronteiras simbólicas entre etnias”.Estas são concebidas pela obrigatoriedade da identificação “frente aos outros e ao olhar dos outros” (2003, p. 08). O nome escolhido pelo Ilê Aiyê evoca a ideia de território. Ou, para usar a expressão de Agier, de “espaço social negro”; dá ao grupo a noção de “casa” (significado do termo “ilê”), de “busca de um lugar, de um espaço seguro, traço visível de um ancoradouro cultural afirmado contra todas as depreciações, sociais e culturais, às quais os negros são habitualmente submetidos nos espaços cotidianos não segregados” (Agier, 2000, p. 121). Ribard (1999), embora não usando o termo território, conduz sua análise do surgimento dos blocos afros em Salvador em torno da noção barthiana de “fronteiras étnicas”; de um nós que se forma como “grupo étnico” frente a outros, importando saber como a fronteira é mantida. Isto é: como os blocos afros investem na diferenciação para construir e manter uma “identidade étnica” que lhes permita ser “outros”. De acordo com essa análise, a rua e, mais exatamente, o carnaval, seriam o lugar da fronteira, das “relações interétnicas” entre “movimento afrobaiano” e “sociedade global” (p. 304); do “confronto” de “dois mundos e duas identidades antinômicas” simbolizadas pelo jovem negro do bloco afro e pelo jovem branco do trio elétrico (p. 306). O embate entre trio elétrico e bloco afro é utilizado, recorrentemente, como símbolo da tensão racial existente no carnaval de Salvador, assim como no de Ilhéus. Além da composição racial de cada um deles, que os identifica e distingue um do outro, da potência sonora do trio, que abafa os tambores dos blocos afros e dos horários destinados aos desfiles destes, sempre tarde da noite ou de madrugada(quando as ruas estão esvaziadas), são percebidos como reprodução, no carnaval, da opressão racial existente no dia-a-dia. Assim, o bloco afro, seja enquanto sede,grupos de pessoas desfilando na avenida ou mesmo como referencial étnico de pessoas que se pensam como nós em oposição a outros, é percebido como um lugar.
Michel Agier (2000) conta a história da fundação do Ilê Aiyê a partir da organização de jovens vizinhos, moradores do bairro da Liberdade, para o lazer. Mesmo antes da fundação da Zorra, espécie de pequena empresa que organizava excursões, a partir da qual seria criado o Ilê, os jovens amigos saíam juntos no carnaval formando uma banda (p. 69), estudavam na mesma escola (p. 66), organizavam torneios de futebol, grupos de quadrilhas para a festa de São João, iam juntos à praia, aos bailes... (p. 65). Era, como tantos outros, um grupo de amigos criando atividades para estar juntos. E o Ilê foi mais uma dessas atividades. O Ara Ketu, outro famoso bloco afro de Salvador, também foi produto de um desejo coletivo de amigos e familiares que queriam desfilar no carnaval (Guerreiro, 2000, p. 37). Entre os blocos afros de Ilhéus não foi diferente. O Lê-guê Depá, primeiro bloco afro da cidade, surgiu em 1980, quando pessoas que se reuniam para atividades artísticas – de teatro e de dança – e de lazer resolveram fundar um bloco afro. Na história de fundação do Miny Kongo, o segundo bloco de Ilhéus, dá-se o mesmo: foi numa excursão de amigos para Olivença(um dos destinos turísticos de Ilhéus) que, pela primeira vez, comentou-se sobre a formação de um bloco afro. O Força Negra foi formado a partir do MEPI – Movimento Estudantil de Promoção de Ilhéus, associação estudantil.E, para concluir os exemplos, o Dilazenze também surgiu tendo por base uma associação de amigos de bairro chamada Associação Juvenil do Alto dos Carilos (AJAC) que tinha por objetivo organizar passeios, festas e, principalmente, torneios de futebol.
Os blocos afros, seriam, então, territórios negros não somente porque são espaços onde pessoas negras se reúnem – o que já ocorria antes de suas fundações –, mas, fundamentalmente, porque ali é produzida o que Guattari chama de uma “subjetividade dissidente” da “subjetividade capitalística”, que é a dominante (1986). “Subjetividade capitalística” é o mesmo que “ordem capitalística”, cuja definição fica bem clara no seguinte trecho: A ordem capitalística produz os modos das relações humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado, como se ama, como se trepa, como se fala, etc. Ela fabrica a relação com a produção, com a natureza, com os fatos, com o movimento, com o corpo, com a alimentação, com o presente, com o passado e com o futuro – em suma, ela fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo. (Guattari e Rolnik, 1996, p. 42).
Já “subjetividade dissidente” é o mesmo que “processo de singularização”, “singularidade”; é a invenção de outros modos de existência. Como explicam Felix Guattari e Suely Rolnik:
o termo ‘singularização’ é usado por Guattari para designar os processos disruptores no campo da produção do desejo: trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística, através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc.” (Guattari e Rolnik, 1996, p. 45).

No caso dos blocos afros, a subjetividade dissidente aí produzida é negra. Voltando a Raquel Rolnik (1989), então, poder-se-ia afirmar que os blocos afros são “territórios negros” porque neles continua a se desenvolver um devir negro , que floresceu ainda nas senzalas, como “afirmação da vontade de solidariedade e autopreservação que fundamentava a existência de uma comunidade africana em terras brasileiras”. Foi essa “vontade de solidariedade e autopreservação” que fez com que grupos totalmente heterogêneos, “cujo único laço era a ancestralidade africana”, pudessem se constituir em comunidade (p. 30). Assim, a associação entre território negro e bloco afro conjuga o espaço físico do bloco – seja como sede, seja como grupo de pessoas desfilando na avenida, ensaiando em uma praça, promovendo ou assistindo a um espetáculo – com um “território existencial”, como definido por Guattari (1986): Um território é o conjunto de projetos ou de representações sobre o qual vai se desencadear pragmaticamente toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. (p. 119).
O bloco afro é um “território negro” porque é um lugar de produção de subjetividade negra, a partir de sua relação com o candomblé como fonte de “cultura negra” e das diversas atividades promovidas pelos blocos, especialmente aquelas que objetivam a preparação para o carnaval e o próprio desfile, no qual mais se expressa seu desejo de singularidade: com suas danças e roupas afro; sua música – o samba-reggae ou outras de ritmos considerados mais tradicionais, como o ijexá –; a valorização de uma beleza própria, distinta da considerada dominante, com eventos como A Noite da Beleza Negra; a elaboração de uma história própria através da valorização de personagens históricos negros, como Zumbi dos Palmares, ou de episódios da História que demonstram valentia, coragem, desejo de libertação durante a escravidão, como A Revolta dos Malês ou A Revolta do Engenho de Santana, em Ilhéus. Essa história é contada como o tema escolhido para cada desfile, que deve orientar a elaboração da música, das fantasias e alegorias do bloco, como um enredo das escolas de samba. * * *
Retomando o início deste artigo, não há uma relação natural entre produção de cultura negra e população afrodescendente; tanto é assim que há inúmeros espaços de segregação racial no Brasil e nem todos eles apresentam grupos afroculturais, grupos religiosos de matriz africana, grupos de música afrobrasileira ou organizações do movimento político negro. Nem o sentimento de ser estigmatizado, segregado, gerará, automaticamente, o desejo de mudança. Como afirma Guattari, “o que faz a força da subjetividade capitalística é que ela se produz tanto no nível dos opressores quanto no dos oprimidos.” (Guattari e Rolnik, 1996, p. 44). Não é fácil produzir uma subjetividade dissidente, ou seja: entrar em devir negro, mulher, homossexual, cigano, índio etc.,quando a forma predominante de funcionamento do mundo espera comportamentos, pensamentos e sentimentos com ela condizentes. Das pessoas pobres – primeiro tentando ignorar sua cor –, espera-se que acreditem que sua condição é fruto de sua “incapacidade” de mobilizar os meios de ascensão social, especialmente a educação e o trabalho, e que, portanto, se esforcem para isso. Se não é possível ignorar a cor, espera-se que entendam que ela influenciou a situação socioeconômica no passado, mas que isso será revertido à medida que as pessoas se esforçarem para tanto, por meio, novamente, da educação e do trabalho. A atribuição de marginalidade a territórios negros tem a relação com o trabalho como argumento central, como explica Raquel Rolnik (1989) referindo-se aos territórios negros paulistanos no período pós-abolição:
Sua marginalidade era identificada com a não-proletarização de sua população, o que é imediatamente associado à ideia de desorganização, uma vez que a ocasionalidade da distribuição dos tempos de trabalho e lazer contrasta com a disciplina e regularidade do trabalho assalariado. (p. 33).
Ouvi, em diversos momentos, os dirigentes dos blocos afros serem criticados, inclusive por seus familiares, por não terem estudado, por não buscarem emprego. Como investir tempo e energia num bloco afro se a forma de suprir as exigências materiais da vida não vêm através dele? Os grandes blocos afros de Salvador, como o Ilê Aiyê e o Olodum, são exceções, é claro, e, ainda assim, para algumas poucas pessoas que os dirigem. Outro bloco afro considerado grande, o Ara Ketu, mudou completamente sua configuração, investindo no formato de banda musical e de bloco de trio. Assim, às vezes, os dirigentes de blocos afro de Ilhéus deixam os grupos de lado e se tornam trabalhadores ou, o que é mais comum, desempregados que vivem de pequenos trabalhos ou biscates. Mas, quando o bloco afro existe –mesmo que apenas enquanto projeto de vida –, ele constitui um território negro por ser o lugar de produção de modos de vida singulares e de desejo de diferir do mundo tal como ele existe, com suas relações de opressão, entre elas o racismo que segrega o espaço do bloco e as pessoas que vivem nesse espaço. Território negro capaz de produzir mudanças em território negro.