terça-feira, 23 de junho de 2015

Nota da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde contra os atos de intolerância religiosa


As religiões sempre ocuparam papel importante em nosso país, na construção social, política, cultural, influenciando formas de ser e agir em nossa sociedade. Isso pode ser constatado em nosso cotidiano quando nos deparamos com símbolos religiosos em hospitais, fóruns, ou em outros espaços públicos, nos feriados religiosos como: Sexta Feira da Paixão, Corpus Christi, Dia de Nossa Senhora Aparecida que é considerada a Padroeira do Brasil. Nos quartos de hotéis quando abrimos as gavetas e lá está o Novo Testamento, na virada do ano quando levamos flores e presentes para Iemanjá, nas escolas com o ensino religioso.
Sabemos que as religiões são reconhecidas como um direito humano e encontram proteção no texto constitucional brasileiro, ao lado de afirmativas da laicidade do Estado, que terá a obrigação de proteger indivíduos e grupos para o exercício de suas crenças, assim como devem ser protegidos os direitos daqueles que não tem religião no Brasil.
Verificamos hoje no Brasil o aumento da intolerância religiosa que vem crescendo e atingindo principalmente as religiões afro-brasileiras, devido ao papel que o racismo tem na produção de suas tentativas de inferiorização somando-se a desigualdade social, a discriminação racial e de gênero, além do preconceito de classe, da homofobia, lesbofobia e transfobia.
Dados históricos mostram que o Brasil só vem dando continuidade ao processo iniciado anos atrás de violação de direitos, com a autorização do Estado Brasileiro que deveria fazer cumprir a Constituição Brasileira, que estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida na forma de lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias. 
Isso pode ser constatado no Quebra de Xangô, em 02 de fevereiro de 1912, com a invasão e destruição dos terreiros em Alagoas(Maceió), um violento episódio de perseguição aos Pais e Mães de Santo. No Rio de Janeiro não foi diferente e temos a prova viva da violação dos direitos do povo de terreiros na “assim chamada” Coleção Magia Negra. Essa coleção é constituída de adereços e insígnias dos Orixás que foram retirados sem autorização dos terreiros, apreendidos pela polícia e foi fruto da repressão policial às casas de santo na primeira metade do século XX. A coleção encontra-se, ainda hoje, sob a custódia do Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, perpetuando uma memória viva de um dos aspectos da violência e de desrespeito à dignidade humana e a uma tradição religiosa.
Hoje nada mudou, pois a intolerância religiosa se afirma com a conivência do Estado Brasileiro que prefere ficar omisso a essa questão apesar da Constituição Brasileira e de ser signatário de vários Tratados Internacionais como a Declaração Universal de Direitos Humanos e da Declaração para a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação baseada na Religião ou crença adotada pela ONU em 1981. E ainda descumpre o Estatuto da Igualdade Racial (Lei Federal nº 12.288 – 20 de junho de 2010) que possui um capítulo voltado para as religiões de matriz africana no qual “diz: as religiões de matriz africana são reconhecidas juridicamente com estatuto de religião, em patamar de igualdade com todas as demais confissões religiosas. A liberdade de crença contempla: liberdade de liturgia; livre exercício do culto e proteção aos locais de culto. Ao poder público cabe combater a intolerância e discriminação que se abatem sobre fiéis No tocante aos meios de comunicação, é dever do Estado coibir a difusão de imagens e abordagens que exponham pessoas ao ódio ou escárnio motivados por preconceito contra as Religiões Afro-Brasileiras.”
Estamos diante de uma grande questão: como o poder público vem combatendo a intolerância religiosa e a discriminação?
Os acontecimentos mostram que o poder público não tem essa pauta como prioridade, muito pelo contrário, onde muitas das vezes ele é o próprio agente opressor, como foi o caso em 2008, da demolição parcial do Terreiro Oyá Onipó Neto por funcionários da Superintendência Municipal de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município (Sucom) na Bahia.
Outro episódio que aconteceu em 25 de agosto de 2014 e que foi noticiado na televisão, mostrou um estudante de 12 anos impedido de entrar na escola pública em que estudava por usar guias de candomblé. O caso ocorreu na escola municipal Francisco Campos, na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisadora Denise Carrera, ligada à Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), levantou casos semelhantes de intolerância religiosa em escolas de três estados brasileiros :Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Ela observou que “ a intolerância religiosa no Brasil se manifesta principalmente contra as pessoas vinculadas às religiões de matriz africana. Dessa forma, a gente entende que o problema está muito ligado ao desafio do enfrentamento do racismo, já que essas religiões historicamente foram demonizadas”.
No Rio Grande do Sul o povo de umbanda e do batuque foi vencedor no projeto que tramitava no Legislativo deste estado que proibia o uso de animais em rituais pelas religiões afro-brasileiras. O povo de terreiro saiu às ruas, e lutou para garantir que a Constituição Brasileira fosse respeitada, já que assegura a liberdade de crença e livre exercício de culto. Paradoxalmente o projeto que queria proteger os animais não interferia nos abatedouros e aviários mostrando nitidamente um cunho racista e de intolerância ao grupo afro-religioso.
Um fato atual de intolerância religiosa que causou grande constrangimento aconteceu nesses últimos dias quando uma menina de 11 anos, iniciada no Candomblé, sofreu uma pedrada quando seguia com parentes e irmãos de santo para um terreiro na Vila da Penha no Rio de Janeiro. O fato comoveu a nação e mais uma vez o povo de terreiro precisa sair às ruas para mostrar o seu descontentamento e tomar posição no enfrentamento da intolerância religiosa e na garantia dos seus direitos.
É interessante perceber o movimento das autoridades do governo, e de algumas lideranças de outras tradições religiosas que receberam a menina e lhe prestaram solidariedade. Mas é preciso ir além, pois só esse tipo de postura não garante o cumprimento da legislação, e não muda a posição do Estado diante de todos os acontecimentos e episódios que revelam sua omissão.
É preciso perceber também o nosso próprio movimento enquanto lideranças de terreiros e que rumos queremos tomar. Perceber que o nosso trabalho precisa ser intenso de norte a sul do país, pois os casos aqui relatados de intolerância religiosa foram aqueles que ganharam mídia e portanto foram visibilizados, porém, temos muitos outros casos acontecendo que não tomam essa dimensão, ou seja, nem tomamos conhecimento.
É preciso compreender que racismo e todas as formas de intolerâncias causam sofrimento psíquico e que não afetam somente a pessoa, afetam sua família e sua comunidade.
Estamos em tempo de realização de diversas conferências nacionais e temos que incluir essa luta em nossas pautas. E como já se aproximam as eleições municipais, a nossa atenção também deverá ser cuidadosa para eleger representantes que defendam nossos direitos e a nossa tradição.
Entendemos que transformar esta realidade deve ser um compromisso de governos, segmentos religiosos, movimentos sociais e de todas as pessoas para a construção de uma sociedade fundada em valores que fortaleçam o respeito à diversidade religiosa, aos direitos humanos e a uma cultura de paz.
Precisamos continuar lutando para que as diversas formas de intolerâncias sejam coisas do passado e que os direitos sejam realmente garantidos para todas e todos, religiosos ou não.
Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde

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